O GALHO

agosto 15, 2008

Cinco amigos, A, B, C, D e E estavam a frente de uma casa esperando um táxi. No gramado a frente de casa havia um galho de palmeira aparentemente sem vida ao chão.

A, curioso com assuntos filosóficos, lança um questionamento em forma de pergunta aos amigos:

 -queria que vocês me respondessem como acham que esse galho veio parar aqui-. B respondeu – visto sua cor amarelada, o que demonstra a sua fragilidade, diria que o vento o arrancou e o trouxe até aqui. A complementa a pergunta – Acha que alguém pode tê-lo pego do chão do jardim e o trazido até aqui? B responde categoricamente – Não.  A lançou a pergunta ao resto dos amigos, que prontamente concordaram com a conjectura de B. A pergunta diretamente a C – se B não tivesse respondido essa questão da forma que respondeu, se eu tivesse lançado a questão diretamente a você, você teria respondido exatamente como B respondeu? – C responde – Acho que não da mesma forma, não com as mesmas palavras, mas a idéia em si teria sido a mesma. A indaga – e se eu falasse que, como diria Goethe, “palavras têm poder”, e que algumas colocações podem fazer toda a diferença, já que precisamos de palavras pra expressar objetivamente nosso pensamento, sentimento ou a crença na falta deles, o que você me diria? C responde – dependendo do assunto, acho que concordo-.

A pergunta a D e a E – se C não tivesse concordado tão abruptamente ou se ele apenas não tivesse tomado uma iniciativa, vocês teriam concordado com a interpretação de B? – Ambos respondem mais ou menos o que C respondera anteriormente.

A, notando que de fronte da casa em que estão havia outra casa com uma palmeira, lança uma nova questão, dessa vez, endereçada a todos – vocês vêem alguma possibilidade em o vento ter arrancado o galho aparentemente frágil da palmeira daquela árvore e o trazido até aqui ou que o morador daquela casa, por um motivo qualquer, teria pego o galho aparentemente morto de sua palmeira que jazia em sua jardim e o trazido até aqui do outro lado da rua? – todos respondem em uníssono – Não! Visto a concordância de todos, A diz – então vocês darão ótimos cientistas ou ótimos religiosos, visto que, por mais que as possibilidades aumentem e visto que não sabem a verdade por trás do fato, concordam plenamente com um conjectura sem darem chance há uma dúvida ou a probabilidade de não haver probabilidade, ou seja, abrir mão da questão  -. Ao ouvir as palavras de A, B questiona – então você está atrás da verdade? Só a verdade justificaria o fato? A replica – Não. Não procuro a verdade, mas, diferente de seus idealismos, não me conforto com conjecturas que tendam a ganhar o valor de verdade. Embora goste de conjecturas, prefiro ser amigo da verdade, que, no caso, e como tudo no mundo, é a total ausência dela. D diz – o táxi chegou -.

fevereiro 20, 2008

“Em algum recantando afastado do cintilante universo despejado no incontável sistema solar; houve uma vez um astro no qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais mentiroso da “História universal”, mas foi apenas um minuto. Depois de poucos fôlegos da natureza o astro congelou, e os animais inteligentes tiveram que morrer. Alguém poderia inventar uma fábula assim, e mesmo assim não teria ilustrado suficientemente a maneira lamentável, vaga e efêmera, sem objetivo e arbitrária com que o intelecto humano se apresenta dentro da Natureza”

Friedrich Nietzsche em “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral”.

 Acho que isso sintetiza tudo o que eu quis dizer até agora

amor

fevereiro 19, 2008

Eis a bandeira vermelha que ergo no deserto de meu labirinto.

Esta bandeira ficará erguida, desfraldada, solta, voando ao lado de meu trono.

A cada acoite dos ventos, seu leve tecido rubro me derrubará até que eu aprenda a cair em pé como os felinos e não mais quebrar meu chão de delicados espelhos.

Embora não tenha real noção de sua estatura, sentarei em meu trono sob sua sombra até o dia em que o vento a acoitará violentamente sob a minha.

praticidade

fevereiro 19, 2008

Sempre que há um debate filosófico, principalmente quando se fala de forma Naturalista, Existencialista ou Irracionalista, é natural que culmine na questão da praticidade. “Ás vezes, na vida, temos que ser práticos”, é algo bem comum de se escutar. Ou, talvez, algo mais imperativo como “seja prático!”.

As pessoas falam da praticidade como uma arma mágica divina. Uma arma capaz de matar os problemas da vida. Eu considero a praticidade uma arma que só pode ser usada contra “as coisas práticas da vida”, coisas do mundo da razão, logo, dos seus substratos, como a técnica. Contra a vida e as coisas que a constituem, ela não possui nenhuma efetividade, pois os problemas da vida tem em seu âmago a própria vida, onde a razão, por sua fragilidade, simplesmente não tem vez. Essa “magia” que as pessoas tanto rezam em suas “espadas” é uma magia forjada; Ela não é arte, é artefato. Um artefato, pra mim, não é nada mais que uma ferramenta. No mundo de hoje, a ferramenta tornou-se mestre de seus artífices, de seus criadores.

Pensemos então nos problemas da vida como um monstro, um dragão. As pessoas, empunhando suas espadas mágicas, pulam com fúria em cima do dragão e desferem um golpe aparentemente mortal. A morte do dragão cria a ilusão reconfortante de que o mal se desfez, mas nunca esperam que ele irá renascer em outra forma, e, talvez, mais forte. Ou melhor, nunca esperam que ele nunca tenha morrido de verdade. A couraça do monstro é destruída e seu interior desaparece. Isso ocorre por que o interior do dragão é desconhecido, invisível aos nossos olhos, e, por nossa falta de visão e de noção de sua invisibilidade, ficamos reconfortados em nossa vitória por simplesmente desconhecermos o seu conteúdo invisível.

 Há pessoas feito eu, os não práticos, os Dionisíacos. Pessoas que por falta de interesse, nunca quiseram tirar a espada da pedra por simplesmente reconhecerem que nela há uma magia forjada. Pessoas que preferem o mano a mano com o dragão, acreditando assim estarem mais perto de algo sincero e valoroso, e, com isso, mais perto da arte de viver.

Destruindo o dragão com minhas próprias mãos, poderei escancarar-lhe a couraça, sentir sua carne e ver de perto suas vísceras e seu coração.

Coisas aterradoras e maravilhosas, invisíveis aos olhos de usurários de magia forjada pelas técnicas da razão.

bora menino!

fevereiro 19, 2008

“Heidegger considerava o seu método fenomenológico e hermenêutico. Ambos os conceitos referem a intenção de dirigir a atenção (a circunvisão) para o trazer à luz daquilo que na maior parte das vezes se oculta naquilo que na maior parte das vezes se mostra, mas que é precisamente o que se manifesta nisso que se mostra. Assim, o trabalho hermenêutico visa interpretar o que se mostra pondo a lume isso que se manifesta aí mas que, no início e na maioria das vezes, não se deixa ver.”

 HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!

tá cá porra!

tudo o que eu ouço é:

fevereiro 19, 2008

“Não!”. “Eu digo não a vida! Digo não as cores! Digo não a pluralidade!” isso é tudo o que eu ouço das pessoas. Escuto isso em suas palavras, e, principalmente, no silêncio, como se houvesse algo de afirmativo nessa negação. Um silêncio perante a vida tão avassalador que faz tremer toda a superfície da terra.

Os homens, seres do sexo masculino, adoram mostrar o quão são felizes com o autoconhecimento de seus corpos pela masturbação. Adoram afirmar de forma histérica a sua sexualidade e como esse autoconhecimento trás prazer, um prazer de libertação e a libertação pelo prazer. Mas, e se eu os mostrasse algo de aterrador no autoconhecimento? Algo prazeroso, algo de terrível e temível, mas, que constitui a grande magia e poesia da própria vida? Algo que eles poderiam demonstrar fora das quatro paredes de seus quartos sem perder o prazer do gozo; talvez não um gozo fisiológico, mas, um gozo Nobre.

Onde está a “coisa em si”? Alguém me responda!      

antinatural

fevereiro 18, 2008

Estava vendo o Flickr de uma grande amiga, Paula Muniz (pessoa que nutro uma grande admiração como ser humano e fotógrafa. Não só pelo pesadelo de fotos perdidas em meio a furacões perseguidores ou morte pela arte que ela me contou, mas por perceber nela uma visão e vivência artística autêntica), quando me deparei com uma belíssima foto de dois cachorros da raça Husky. A minha atração foi pela beleza dos animais semelhante a lobos ou mastins selvagens e pela edição da iluminação da foto. Vendo a foto ampliada, notei algo que chamou bastante a minha atenção; os cachorros estavam acorrentados pelo pescoço. Nada mais natural no mundo, eu sei, mas meu espírito sempre tende a poesia perante esse tipo de brutalidade. Quem serão os donos dos cachorros? Não me importo em saber nomes, mas, que raça? Homens? Homens como nós? Qual o nosso interesse real em aprisionar uma criatura que vive em sua condição natural pra perto de nós? Nós temos correntes? Se sim, quem haveria de escolher uma vida acorrentada? Talvez o mundo todo. 

Sempre senti duas coisas quando estou em contato com animais e a natureza; medo e nostalgia. Medo por sentir o eco da naturalidade que há em mim e que sempre deseja vazar, sempre me levando por caminhos estranhos, tortuosos, porém, mágicos e únicos – locais onde posso provar a desmesura do meu gozo pela culpa. Por talvez não saber lidar com tamanha brutalidade e naturalidade, a espontaneidade em essência, a vontade de obliterar tudo o que não é eu e viver em harmonia com o caos natural que constitui as coisas. Um mundo sem valores objetivos, onde a razão não me castra mais, onde eu possa viver em plenitude meu narcisismo, minha sexualidade e minha angústia.

Nostalgia pelo fato de sentir que ainda há a razão para combater o meu desejo, e, com isso, não ser autenticamente aquela criatura devastadora e sátira que eu era quando criança, pois não havia o peso do mundo “adulto/responsável” e norteador. Meu espírito deseja um mundo sem norte, enquanto a minha razão funciona com uma bússola indesejada e impertinente.     

Não negarei aqui o fato de que a beleza lupina do Husky ser um eco de uma  estética cultural, uma beleza totalmente aprovada pelo ocidente e que isso em si faz parte de uma grande tradição secular poética, mas, também não negarei que a beleza dos cães ficou em segundo plano perante a castração das correntes que os prendem pelo pescoço. Acho que como Deus não serve mais ao homem, como Deus é fruto de uma criação mitológica humana e que isso não apetece nosso espírito curioso e questionador, o homem tende a ser o que ele sempre foi, criador. Mas o eco da castração pela moral, pela culpa, que vaga livremente entre os séculos ainda ecoa e macula os nossos espíritos. Naturalmente tendemos a castrar, ou seja, tendemos a ser Deus. Mas, como há a impossibilidade de castrar (pra mim não há castrador, há aquele que deseja ser castrado, já que não temos acesso ao Outro, pois ele só existe simbolicamente para nós e o poder que vinculamos ao outro é unicamente substrato do nosso Imaginário), tudo que nos guia cegamente é o nosso desejo. O dono dos cachorros deseja o desejo muito mais do que o objeto de desejo em si, pois estamos condenados ao nosso reino narcísico solitário e árido. Talvez a prisão de um animal seja equivalente a admiração de fotografias de parentes mortos ou distantes de nós, ou seja, pura nostalgia de nossa naturalidade perdida.

 

 

Belíssima foto, Paula. Parabéns

 

 

A foto pode ser vista aqui: http://www.flickr.com/photos/paulamz/2213495066/

Narciso e Eco

fevereiro 18, 2008

“Eco era uma bela ninfa, amante dos bosques e dos montes, onde se dedicava a distrações campestres. Era favorita de Diana e acompanhava-a em suas caçadas. Tinha um defeito, porém: falava de mais e, em qualquer conversa ou discussão, queria sempre dizer a última palavra.Certo dia, Juno saiu à procura do marido, de quem desconfiava, com razão que estivesse se divertindo entre as ninfas. Eco, com sua conversa, conseguiu entreter a deusa, até as ninfas fugirem. Percebendo isto, Juno a condenou com estas palavras:– Só conservarás o uso dessa língua com que me iludiste para uma coisa de que gostas tanto: responder. Continuarás a dizer a última palavra, mas não poderás falar em primeiro lugar.

A ninfa viu Narciso, um belo jovem, que perseguia a caça na montanha. Apaixonou-se por ele e seguiu-lhe os passos. Quanto desejava dirigir-lhe a palavra, dizer-lhe frases gentis e conquistar-lhe o afeto! Isso estava fora de seu poder, contudo. Esperou, com impaciência, que ele falasse primeiro, a fim de que pudesse responder. Certo dia, o jovem, tendo se separado dos companheiros, gritou bem alto:

– Há alguém aqui?

– Aqui – respondeu Eco.

Narciso olhou em torno e, não vendo ninguém, gritou:

– Vem!

– Vem! – respondeu Eco.

– Por que foges de mim? – perguntou Narciso

Eco respondeu com a mesma pergunta.

– Vamos nos juntar – disse o jovem.

A donzela repetiu, com todo o ardor, as mesmas palavras e correu para junto de Narciso, pronta a se lançar em seus braços.

– Afasta-te! – exclamou o jovem, recuando. – Prefiro morrer a te deixar possuir-me.

– Possuir-me – disse Eco.

Mas foi tudo em vão. Narciso fugiu e ela foi esconder sua vergonha no
recesso dos bosques. Daquele dia em diante, passou a viver nas cavernas e entre os rochedos das montanhas. De pesar, seu corpo definhou, até que as carnes desapareceram inteiramente. Os ossos transformaram-se em rochedos e nada mais dela restou além da voz. E, assim, ela ainda continua disposta a responder a quem quer que a chame e conserva o velho hábito de dizer a última palavra.

A crueldade de Narciso nesse caso não constituiu uma exceção. Ele desprezou todas as ninfas, como havia desprezado a pobre Eco. Certo dia, uma donzela que tentara em vão atraí-lo implorou aos deuses que ele viesse algum dia a saber o que é o amor e não ser correspondido. A deusa da vingança (Nêmesis) ouviu a prece e atendeu-a.

Havia uma fonte clara, cuja água parecia de prata, à qual os pastores jamais levavam os rebanhos, nem as cabras monteses freqüentavam, nem qualquer um dos animais da floresta. Tmabém não era a água enfeada por folhas ou galhos caídos das árvores; a relva crescia viçosa em torno dela, e os rochedos a abrigavam do sol. Ali chegou um dia Narciso, fatigado da caça, e sentindo muito calor e muita sede. Debruçou-se para desalterar-se, viu a própria imagem refletida e pensou que fosse algum belo espírito das águas que ali vivesse. Ficou olhando com admiração para os olhos brilhantes, para os cabelos anelados como os de Baco ou de Apolo, o rosto oval, o pescoço de marfim, os lábios entreabertos e o aspecto saudável e animado do conjunto. Apaixonou-se por si mesmo. Baixou os lábios, para dar um beijo e mergulhou os braços na água para abraçar a bela imagem. Esta fugiu com o contato, mas voltou um momento depois, renovando a fascinação. Narciso não pôde mais conter-se. Esqueceu-se de todo da idéia de alimento ou repouso, enquanto se debruçava sobre a fonte, para contemplar a própria imagem.

– Por que me desprezas, belo ser? – perguntou ao suposto espírito.

– Meu rosto não pode causar-te repugnância. As ninfas me amam e tu
mesmo não parece olhar-me com indiferença. Quando estendo os braços, fazes o mesmo, e sorris quando te sorrio, e respondes com acenos aos meus acenos.Suas lágrimas cairam na água, turbando a imagem. E, ao vê-la partir, Narciso exclamou:
– Fica, peço-te! Deixa-me, pelo menos, olhar-te, já que não posso tocar-te.

Com estas palavras, e muitas outras semelhantes, atiçava a chama que o consumia, e, assim, pouco a pouco, foi perdendo as cores, o vigor e a beleza que tanto encantara a ninfa Eco. Esta se mantinha perto dele, contudo, e, quando Narciso gritava: “Ai, ai”, ela respondia com as mesmas palavras. O jovem, depauperado, morreu. E, quando sua sombra atravessou o Estige, debruçou-se sobre o barco, para avistar-se na água.

As ninfas o choraram, especialmente as ninfas da água. E, quando esmurravam o peito, Eco fazia o mesmo. Prepararam uma pira funerária, e teriam cremado o coprpo, se o tivessem encontrado; em seu lugar, porém, só foi achada uma flor, roxa, rodeada de folhas brancas, que tem o nome e conserva a memória de Narciso.

Milton faz alusão à história de Eco e Narciso, na canção da Dama, do poema “Comus”. A Dama, procurando os irmãos na floresta, canta, para atrair-lhes a atenção:

Ó Eco, doce ninfa que, invisível,
Vives nas verdes margens do Meandro
E no vale coberto de violetas,
Onde ao luar o rouxinol te embala,
Com seu canto nostálgico e suave,
Dois jovens tu não viste, por acaso,
Bem semelhantes, Eco, ao teu Narciso?
Se, em alguma gruta os escondeste,
Dize-me, ó ninfa, onde essa gruta está
E, em recompensa, subirás ao céu.
E mais graça darás, ó bela ninfa,
À Celeste harmonia em seu conjunto!

Minha pergunta: Somos Eco, Narciso ou os dois?

Samsa

fevereiro 18, 2008

olá, 

 

em linhas mal traçadas e presunçosas, contarei um caso bastante curioso que ocorreu comigo na semana de Carnaval.

Nada melhor do que um bom banho pra dormir, não é mesmo? Mas, quem ficaria à vontade se dentro do box do banheiro houvesse uma gigantesca barata? Foi exatamente o que ocorreu comigo.

Estava entrando no banheiro pra tomar meu último banho do dia, quando fui surpreendido por uma enorme barata entre as portas do box. Fui pego tão de surpresa que minha única reação foi dar um salto automatizado pra fora do box. Pensei brevemente no que iria fazer até decidir buscar veneno. Voltando ao banheiro com um frasco de veneno, decido não o fazer, pois o veneno transformaria o banheiro em um ambiente completamente irrespirável. Então, decidi usar o velho método da sandália. Entrando no box,  puxo uma das portas deslizantes para o lado. Nesse momento, tenho a visão aterradora da barata à frente dos meus olhos. Sua forma hedionda era agressiva aos meus olhos e isso era mais do que suficiente para que eu odiasse sua existência. Aproximo lentamente a sandália da futura vítima para que ela não perceba a morte que a espera. Não foi o suficiente. Como se percebesse em minhas intenções o desejo de sua morte, a barata corre e se esconde entre as frestas dos box. Sem paciência para essa operação, decidi deixar pra lá e voltar para cama. Na cama, fui acometido de uma pergunta tão estranha que nem consegui voltar a ler meus livros. A pergunta foi: “por que ela fugiu de mim?” Essa pergunta, de tão absurda e óbvia tomou o meu imaginário durante toda a noite.Pensei e repensei na situação e pensei e repensei em minhas perguntas. Fechei os olhos e revi a forma grotesca da barata, o que me gerou mais perguntas. “De onde vem meu desejo de matá-la?”. Pensando no assunto, percebi que o meu ódio e a minha repulsa pela barata era unicamente cultural. Talvez essa repulsa não seja nem algo criado por mim. Talvez eu apenas estivesse continuando um antigo ritual de ódio ao Outro.

Tentando cessar o “talvez”, procurei ser mais afirmativo comigo mesmo. Pra mim era óbvio que a barata havia fugido do meu golpe movida por um instinto de sobrevivência, de auto-preservação, mas, tentando ser um pouco mais poético, procurei pensar de outra forma.

 Em meu imaginário, puni a barata com consciência. Nessa consciência ela sabia de todas as coisas que a constituía. Ela sabia que não era separada de si própria pela Linguagem, e, com isso, ela era naturalmente ela mesma; Ela era Ser. Ela dava de ombros para qualquer tipo de labirinto narcísico. Não se perdia dentro de seus labirintos e tinha total acesso a ela mesma. Talvez o desejo de sua morte fosse apenas inveja. Inveja pela barata ser ela própria. Ser o estar-aí em sua total condição existencial e não precisar de símbolos e nem nomes para poder se segurar em nada. Eu, criatura que nomifica e dá sentido, me senti muito pequeno perante a sua Natureza devastadoramente viril. Ela era pura liberdade de espírito e pra ela bastava si própria. Tinha tanto respeito por sua “virgindade” que conseguia andar e vagar pelos cantos mais obscuros, sujos e inóspitos do mundo em uma condição muito além do bem e do mal. Muito além de valores.Esse estranho sentimento me tomou por dias. Tentei domar a minha mente mesmo sabendo que minhas questões eram indomáveis; perdi a luta comigo próprio.

No dia seguinte, tomei banho olhando a barata frente á frente, arrumei-me pra sair e encontrei com Haymone. Fomos ver a Noite dos Tambores Silenciosos. Na ida, passamos perto do camelódromo, onde havia construções escuras e inacabadas completamente destruídas pela ação do tempo e natureza. Inebriado pela escuridão do lugar, soltei um comentário que acarretou uma breve discussão.

Eu: Como são duras as formas daqui. Tudo muito escuro… Sombrio.     

Haymone: É horrível!

Eu: Por quê? Por que nunca nos acostumamos com a natureza das coisas? Não será essa a condição desse lugar?

Haymone: E por que desconsiderar a estética? Não temos os cinco sentidos?

Eu: Temos?

Haymone: Claro que temos.

Minha questão vai muito além da postulação científica dos cinco sentidos. O quê gera esse desconforto com todas as coisas que são levadas pelo tempo e, com isso, fogem completamente do domínio humano? Eu poderia me perguntar: “e se um arquiteto reformasse esse lugar, pintasse e terminasse as obras inacabadas, como ele seria?”. A questão é que não existe “se”. Á grosso modo filosófico, as coisas não “foram” ou “serão”, elas “são” e “estão”. Pra mim, o uso do “bom gosto” e “noção estética” não me servem mais, pois, além de não apetecerem o meu espírito e suas questões fundamentais, me soam como escapismos para a brutalidade da realidade, essas que tendem a tomar um caráter punitivo por serem unicamente o que são; Naturais. É isso que gera nos apolíneos o ímpeto modificador para mudar e dar sentido as coisas que são regidas pelas forças brutais e cegas da Natureza. E se o carro quebrasse? Não seriamos forasteiros num mundo obscuro que desconhecemos suas regras? Não somos nós mesmos forasteiros dentro de nossa própria escuridão? Esse apego à luz, ao belo e ao socialmente permitido me remeteu a barata do meu banheiro. Sua carapaça escura e reluzente, suas patas finas e peludas, suas enormes antenas, seu cheiro característico, tudo isso remonta um peso cultural de algo a se ter nojo, algo merecedor de aniquilação, embora eu considere a barata infinitamente superior a nós. Para os apolíneos, a barata é a perfeita caracterização do Outro, enquanto, pra mim, ela é um verdadeiro emblema do “estar-aí” no mundo.

Meu coração se torna cada vez mais bruto ao permitido e ao luminoso. Minha preocupação é “a coisa em si”, pois só assim eu penso que acharei aquela grande força reformadora e movedora de montanhas interiores que desde sempre habitaram em mim. O repúdio ao hediondo tem que ser repensado e a batalha das forças brutas da natureza, respeitado, pelo simples fato de estarem completamente além de nossa presunção de controle.Passei dias pensando sobre isso até que decidi escrever. Acho ainda que o meu raciocínio sobre isso não atingiu sua plenitude, mas sinto que estou muito perto do que procuro. Quanto à barata, nunca mais retornei a vê-la.